A judicialização da saúde e sua crescente consolidação no século XXI
O termo “Judicialização da saúde” se consolidou nas últimas décadas a partir do crescimento exponencial de demandas de saúde em todo o mundo e especialmente no Brasil, diante da grande necessidade de aplicação prática dos direitos previstos pela Constituição Federal de 1988, a qual trouxe a previsão do direito à saúde como garantia fundamental e um direito de todos e dever do Estado, devendo esse mesmo poder público promover a regulação, fiscalização e controle da prestação para acesso irrestrito a esse direito (conforme previsão do art. 6º, 196 à 199, entre outros dispositivos).
Isto porque, até meados do século XX, havia uma grande elitização da saúde no nosso país, já que a maioria da população das classes média e baixa não conseguiam acesso aos serviços, pela própria falta de profissionais e também pela escassez de locais de atendimentos, como clínicas e hospitais, ainda que públicos.
Ou seja, a maioria dos serviços médicos e de saúde eram acessados apenas por aqueles que tinham condições de arcar com os referidos atendimentos de forma particular ou planos de saúde, até que, ao final do século, e especialmente após a conscientização da população sobre as garantias fundamentais e criação do Sistema Único de Saúde (SUS), a sociedade como um todo passou a debater e exigir a aplicabilidade daquelas políticas a serem implementadas.
Assim, a partir da Constituição Federal se pôde perceber a expansão efetiva dos serviços de saúde tanto na esfera pública como na esfera privada, passando a população a ter maiores oportunidades de acesso a tratamentos médicos, consultas, exames, cirurgias e etc.
No entanto, em que pese a estruturação projetada para o SUS, diversos problemas passaram a ir de encontro aos objetivos daquela consagrada conquista social, especialmente em razão da falta de recursos de ordem financeira e da administração precária da parte mínima existente, além da ausência de profissionais devidamente qualificados, hospitais estruturados e insumos suficientes para atender a procura em massa dos referidos serviços.
Nesse sentido, e uma vez não promovidos os direitos consagrados pelo próprio Poder Público, surge o papel da Judicialização da Saúde, configurando-se com a busca pelos cidadãos pela promoção e fornecimento dos serviços de saúde através de demandas judiciais contra o Estado, União e Municípios, bem como em face de planos de saúde, quando estes se negam à cobertura e custeio de procedimentos que o beneficiário/paciente veio a necessitar, seja por suposta ausência de previsão em contrato, seja por possuir um custo bastante elevado (seja este na rede pública ou privada).
Buscar esses recursos para acesso à saúde de forma integral é também, assim como a saúde propriamente dita, um direito inerente a todo e qualquer brasileiro, pois muitas vezes apenas através da judicialização consegue ver efetivado o tratamento devido diante de um diagnóstico complexo e imediato, por exemplo.
Segundo informações do Conselho Nacional de Justiça, o impacto da saúde no país é bastante expressiva, de modo que sozinha atinge cerca de 10% de toda renda do país, percentual este passível de expansão a cada ano, diante do crescimento constante de serviços e por via de consequência, de custos.
Além disso, ainda conforme últimos dados do CNJ, em um intervalo de cerca de quase 10 anos o número de ações judiciais de pacientes em busca de serviços de saúde cresceu cerca 130%, e especialmente na rede privada, mais de 50 milhões de usuários de planos e seguros de saúde são costumeiramente atingidos de forma direta ou indireta pelo fenômeno da judicialização.
São diversas as solicitações no âmbito judiciário, seja para fornecimento de medicamentos, próteses, órteses, exames, cirurgia, e até mesmo de regulação para internamento, e em sua grande maioria embasadas com pedidos liminares e tutelas de urgência. Destaca-se ainda que as demandas individuais predominam sobre as demandas coletivas, especialmente ante a maior taxa de êxito daquela primeira, e por representar a particularidade de cada caso concreto e as diversas possibilidades de tratamentos para as peculiares dos diagnósticos dos pacientes.
É sabido que crescimento das demandas em saúde é consequência lógica da ausência de aplicabilidade das leis de garantias, uma vez que o Poder Público não assegura o direito de todos em ter acesso a integralidade de atendimentos e às políticas públicas e sociais previamente estabelecidas na Constituição Federal. Com isso, os cidadãos buscam através do judiciário os serviços que já deveriam ser fornecidos pelo Estado ou até mesmo aqueles que ainda não são disponibilizados pelo SUS mas que possuem eficácia devidamente comprovada e previsão expressa em relatório médico como última possibilidade de tratamento do indivíduo.
A judicialização da saúde mostra-se atualmente como uma ferramenta efetiva para ver garantidos os direitos sociais à saúde e à ampliação do acesso dos cidadãos aos serviços médicos, exercendo ainda um papel bastante qualitativo no cumprimento do dever do Estado em fornecer maiores alternativas de serviços de saúde no país, impulsionando ainda o diálogo entre os 3 poderes para revisão das políticas e melhor aplicabilidade dos recursos públicos, através do desenvolvimento de melhores tecnologias para a setor e que ainda não são incorporadas pelo SUS.
Sem o olhar atento às necessidades do sistema de saúde e sem investimento adequado em profissionais da área, hospitais e medicamentos, dificilmente a demanda de judicialização conseguirá ser atenuada.
Por: Dra. Amanda Cerqueira